Em entrevista para o projeto "Operação Love Bombing", a psicóloga do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM) do município de Niterói/RJ, Adriana Lins, explica o que é violência psicológica, perfil e estratégias usadas pelo autor da violência, ciclo da violência psicológica, efeitos do abuso, porque é difícil sair de uma relação abusiva, entre outros.
Adriana Lins: É toda a violência, por ação ou omissão, que cause um dano emocional à mulher. Traz prejuízo para o desenvolvimento pessoal, seja no sentido afetivo, social ou laboral, e que compromete a vida da mulher sempre a partir de comportamentos como humilhação, ridicularização, ameaça, coação e perseguição. Inicialmente, com a Lei Maria da Penha, a violência psicológica é sinalizada, mas só foi, de fato, passível de responsabilização no ano passado, com a Lei 14.188, que traz a definição que está na Lei Maria da Penha para o Código Penal, definindo-a como crime.
Adriana Lins: Podemos pensar a partir de dois vieses: tanto por uma ótica com características vaidosas, no sentido de que tudo que faço para aquela mulher, os presentes que dou, toda aquela situação de conquista, de enaltecimento, no fundo, tem o objetivo de enaltecer minha própria atitude. Quando eu faço para o outro, estou dando luz à minha atitude. Eu faço e as pessoas em volta dizem: "nossa, você foi premiada!", "você achou o marido perfeito, o namorado perfeito". E também por uma característica manipuladora no sentido do controle, do poder, do abuso de poder, de ter todo o controle sobre a vida daquela mulher. É um exercício de chamar atenção para tudo que eu faço, para que eu consiga exercer esse controle e manipular as vontades dela.
Podemos elencar algumas características desse autor, como egocentrismo, muita intransigência, uma volatilidade do comportamento, do tipo, em um momento está muito amoroso mas, em qualquer sinal de frustração, ele se torna muito agressivo, nem fisicamente, mas com palavras. Ele humilha e desqualifica a mulher a partir dessa intolerância à frustração. Também tem a dificuldade de se responsabilizar pelos próprios atos. Ele joga a culpa na mulher. Ele até pede desculpas, mas é assim: "desculpa, mas eu fiz porque você me provocou", "porque você sabe que eu tenho ciúme", ou "porque você saiu com aquela roupa que eu não gosto", ou "porque você conversou com aquela pessoa", ou "porque chegou um pouco mais atrasada e você sabe que eu fico preocupado"…
Essa violência se funda em um machismo presente na nossa sociedade que estrutura e autoriza essas violências baseadas no gênero. Nesse sentido, a mulher pode ser tratada como objeto, com inferioridade, sendo passível de controle e subserviência.
Adriana Lins: Todos os contos de fada, o romantismo… A gente brinca aprendendo a ser mãe, aprendendo a ser dona de casa, a ser uma boa esposa e a esperar o príncipe encantado. E é exatamente isso que ele vende. É mais ou menos como funciona o 171, aquela contravenção em que o sujeito te vende uma mentira. Ele sabe quem é a vítima quando o olhinho dela brilha. Quando ele vê que o olho do outro brilhou é onde ele age. O brilho do olhar é essa coisa do apaixonamento. Ninguém entra em um relacionamento esperando terminar. Você quer construir algo. E essa expectativa é alimentada ao longo da relação. A relação não é só de agressividade, e isso faz com que eu invista e espere algo dele, já que ele diz que tem para me oferecer e eu é que não estou sabendo aproveitar. Muitas vezes isso é dito: "você é que está jogando fora", "você nunca vai encontrar alguém como eu".
Como psicóloga que trabalha em um Centro que recebe mulheres que vivenciam violências múltiplas, te digo: boa parte dessas histórias de vida têm a característica de acumularem violências domésticas e de gênero desde a infância. Desde meninas somos preparadas para servir, preparadas para esse lugar de silêncio, de aceitação.
Adriana Lins: Não existe um modo único e pode se dar de diferentes maneiras, mas pode estar presente a sedução. Mesmo quando chega no Centro Especializado uma mulher que fez um registro de uma violência física é quase certo que, junto a isso, tenha situações também de violência psicológica. São condições muito sutis que vão fragilizando a mulher até o ponto em que ela sofre uma violência física e não tem condições de reagir. Quando isso acontece, ela já vem sofrendo isso, mas não identifica, não percebe, porque são sinais muito sutis.
O início, que seria uma primeira etapa, é a da sedução. Ele se apresenta como aquele que vai corresponder a todos os seus anseios e necessidades. Há alguns sinais disso, como um apaixonamento repentino, do "amor à primeira vista". O sujeito não vive sem você, se coloca como imprescindível. Nessa etapa inicial é muito característico esse cuidado excessivo. Acho que essa palavra é importante para que a gente consiga fazer essa diferenciação. Aquele sujeito que liga para você o dia inteiro, quer saber onde você está, para dar "bom dia, boa tarde, boa noite", "acabou de almoçar me liga". Isso é característico nesse início, dessa necessidade de estar presente, de estar participando, sabendo todos os seus passos. Então quando a mulher não atende o telefone, ele muda, fica mais nervoso. Pode não ser uma agressão física, mas fica sem falar, fica emburrado, diz que está chateado, que "gosta tanto de você", que "faz tudo por você e você não retribui". Esse peso de tudo aquilo que ele dá, ele quer de volta, na mesma medida. E ele cobra.
Às vezes, a gente até percebe, sente que a pessoa é muito grudenta. É aquela pessoa que chora, que diz que não vive sem você, que vai mudar, que vai fazer e acontecer. Aí você acaba cedendo, porque, de repente, ele traz uma história triste, que com a ex-namorada aconteceu isso e você está agindo igual. Ele te coloca nesse lugar de culpa. Ou pode apresentar um histórico familiar de abandono e considerar que "você é a única pessoa que o entende", que "você é diferente de todos". Ele te coloca em um lugar que a gente quer estar. Ele te ama porque você é diferente ou especial e não é como as outras. Vai te enaltecendo, e isso vai sendo alimentado no ciclo de violência.
Com o tempo de relacionamento, ele pode ir se adonando da mulher e a característica do cuidado, do adorno, do mimo, diminui. Não existe mais. Pode surgir nas situações de desqualificação, de ridicularização, de fomentar uma certa insegurança, questionar sua capacidade, começar a produzir um isolamento de sua rede, dos seus amigos. Às vezes, isso não acontece nem de forma direta, mas de forma sutil. Ele vai esgarçando ou criando um distanciamento e a mulher começa a falar com aquela amiga, mãe, de uma forma mais reservada. O tempo de encontro vai sendo maior. Às vezes, também ocorre o distanciamento de forma intencional, para envergonhar você. Tipo: quando você diz que vai sair com as amigas, ele não diz que não vai. Ele vai, mas quando chega lá fica "de bico", não fala com ninguém ou fica fazendo comentário, bebe, faz um show na frente de todo mundo, briga com alguém, tem uma crise de ciúmes. Aí você passa vergonha. Se desculpa por ele. Mas, no próximo encontro, você não vai.
O que é interessante na violência psicológica, e o que dificulta um registro de ocorrência, é que ela faz sentido dentro da relação. Quando você se queixa com um amigo ou amiga, normalmente escutamos "qual o problema? Ele não fez nada". São coisas mínimas que só você sabe o sentido daquilo na relação. Talvez seja um olhar, um gesto, uma piada, um comentário, que somente nós sabemos o peso daquilo. É muito subjetivo. As pessoas que estão em volta não percebem. Aí você acaba se questionando e duvidando de você mesma.
Quando ele percebe que você está se afastando, ele volta com todo aquele amor. Vem com aquelas cenas e promessas de amor. É o momento em que ele tenta reconquistar sua confiança. Aí você pensa: "ah, é besteira, ele me ama", ou "ele faz isso, mas ele gosta de mim", "ele tá com problema, perdeu o emprego"… Qualquer situação serve para justificar essa paralisia que a mulher se encontra numa relação abusiva.
Adriana Lins: Uma mulher não consegue romper, ou quando rompe volta, por vários motivos, desde uma questão financeira ou por uma distorção subjetiva, porque você não se reconhece mais capaz de viver fora daquela relação. A mulher escuta todos os dias: "você é gorda", "você é feia", "ninguém vai te querer", "para onde você vai com três filhos", "você não trabalha, você não estudou"... Como a mulher vive o isolamento social, familiar, fica ainda mais difícil de conseguir fazer o movimento de saída. Por isso, a importância da rede, dos serviços acolherem, no sentido de dar voz a essa mulher e ela perceber que não está sozinha, que consegue, que as pessoas acreditam nela, que ela pode fazer algo.
Adriana Lins: De várias maneiras e podemos exemplificar com atitudes de controle. Por exemplo, controlar suas redes sociais, pedindo a senha, para entrar e ficar vigiando, sempre com essa justificativa do ciúme, do cuidado, ou dizendo "eu não tenho segredos, por que você vai ter?". Não existe uma individualidade. Não existe uma separação. Em uma relação abusiva, é como se os dois se fundissem e fossem uma coisa só. Mas o apagamento é da mulher em função do que é relacionado ao companheiro. É o que chamamos de aniquilação subjetiva. A morte em vida. Você vai se apagando. Você não tem mais os seus planos, os seus desejos…
Há relacionamentos de dez anos em que a mulher não percebe que está numa relação abusiva. Por exemplo, uma mulher capacitada para o mercado de trabalho, mas que não pode trabalhar. Não porque ele proíba, mas diante de qualquer movimento de trabalho dela, ele questiona: "acho ótimo, vai mesmo, mas e nossos filhos? quem vai ficar com eles? agora, se acontecer alguma coisa na escola você é responsável por isso. Eu sou o provedor, você é a cuidadora". Entra essa relação do papel social em que a mulher está. Então, ela naturaliza. Não acha isso violento, porque, de fato, entende que a mulher é quem tem que cuidar dos filhos.
Também tem a questão da roupa. Ele pergunta se você vai sair e diz que está feio. Às vezes, nem diz que está feio, mas diz "eu gosto mais de você com calça. Realça. Fica mais bonita". Te elogia de outra maneira. E você vai fazendo. De repente, quando você vê, não consegue mais botar uma saia. O mesmo acontece com maquiagem. São coisas do cotidiano que você vai abrindo mão de fazer sem perceber que é uma violência.
Adriana Lins: É muito mais comum recebermos (no CEAM) mulheres que chegam numa agudez da violência do que nessa fase inicial. Quando a mulher chega a partir de uma violência física, que foi o que motivou a ida a uma delegacia ou ao Centro Especializado, ela está muito machucada, ferida e triste. Sabe quando você está incrédula? Quando você não imagina que poderia ter acontecido isso contigo? Como se fosse um trauma. Muita tristeza em reconhecer todo aquele investimento de vida, de tempo, de afeto, e de repente, você se vê injustiçada. Você não merecia aquilo.
A violência psicológica é como se não tivesse fim. Você não consegue identificar. Quando você fala, as pessoas acham que é bobeira. Existe um sentimento muito grande de apatia, imobilidade. É como se a mulher não tivesse mais perspectivas. Como se não tivesse mais projetos de vida. É um apagamento. Uma sensação de cansaço, impotência. Normalmente as mulheres chegam com as relações familiares, de amigos, trabalho, muito frágeis. Também chegam com ansiedade, com muito medo. Culpa. Se ela procura uma delegacia para fazer um registro de ocorrência, sente como se tivesse feito algo contra ele. Ao mesmo tempo que eu falo, eu justifico. Ao mesmo tempo que eu digo que não gosto, que eu sofro, que me faz mal, que me incomoda, eu justifico aquela atitude dele.
Adriana Lins: Quando a gente fala de violência, falamos de saúde pública. A violência afeta as mulheres de diversas formas, inclusive com o desenvolvimento de quadros de saúde mental graves, de depressão, tentativa de suicídio, crises de ansiedade, traumas. A violência psicológica também afeta de forma somática. Eu posso, por exemplo, ser aquela paciente poliqueixosa, com dores de cabeça crônicas, afinal, eu vivo sob tensão psicológica; hipertensão, quadros cardíacos, gástrico… Ou seja, você acaba adoecendo em função desse quadro de fragilidade emocional. Por isso, é muito importante que a gente dê visibilidade a essas situações, ainda mais a violência psicológica, exatamente para que as pessoas entendam e percebam que existe um nexo. Essa mulher não está solta. Ela não é só um estômago, uma dor de cabeça. Ela tem uma história. Aquilo afeta e produz adoecimento.
Quando a gente fala de saúde hoje, como o médico de família, que faz um acompanhamento mais próximo, é possível identificar aquela mulher que chega sempre com a mesma queixa. A escuta é para que ela possa se sentir segura e falar do que dói, falar porque sofre. Às vezes, ela não faz associação entre o quadro de saúde e a situação de tensão, de risco e medo que vivencia.
Adriana Lins: Niterói tem uma rede bastante completa. Durante a pandemia, foi criada a Sala Lilás, que funciona dentro do Posto de Polícia Técnica, o antigo IML. Lá são atendidas mulheres e crianças, meninas e meninos, que sofreram violência, em um espaço mais humanizado. Mas, ali, elas só são recebidas a partir de um registro de ocorrência. É uma parceria dos municípios de Maricá, Niterói e o Tribunal de Justiça.
Também foi estabelecida uma parceria com o Plaza Shopping, onde funciona um núcleo - NUAM - com uma psicóloga, que oferece orientação e encaminhamento para a rede, de uma forma bem discreta, porque a mulher pode dizer que vai ao shopping.
Tem o CEAM, que é o Centro Especializado. Atendemos todas as mulheres, sem a exigência do boletim de ocorrência, mas só permanecem no acompanhamento aquelas que estão em situação de violência. Nós as recebemos e fazemos os encaminhamentos necessários. Ali ela vai encontrar orientação, informação, para poder tomar a decisão que for melhor para ela naquele momento, sabendo quais os passos, os serviços que podem oferecer ajuda e de que forma podem oferecer, conversando e explicando o que é a Lei (Maria da Penha) e os desdobramentos do processo.
Tem mulheres que, dependendo do território, não podem fazer um registro de ocorrência, mas, ao mesmo tempo, precisam de ajuda, de orientação, para acessar a Justiça, mas ela sofre ameaça. Orientamos e encaminhamos, acompanhando os seus passos, sempre tendo essa perspectiva da decisão dela, no tempo dela, o que é possível para ela. Às vezes, eu posso querer fazer um registro de ocorrência, mas, neste momento, eu não tenho condições, porque para onde eu vou? Existe a medida protetiva, mas não necessariamente o juiz vai determinar o afastamento desse autor. Aí eu faço um registro de ocorrência e volto para casa? Eu posso estar em risco maior. No CEAM a gente vai construir uma estratégia possível para ela, avaliando o risco que ela vive naquele momento. Há situações em que não se tem tempo. Se ela permanecer naquela relação, ela vai morrer. Nesse caso, existe um serviço específico que é o abrigo de segurança, um abrigo sigiloso. O CEAM é quem faz esse encaminhamento, caso seja do desejo dela.
Para além disso, tem o Juizado da Violência Doméstica, em Niterói, e a Defensoria Pública. Se a mulher não consegue fazer um registro de ocorrência, a Lei já permite solicitar medida protetiva sem ter feito esse registro. Eu não preciso passar pela delegacia. Eu vou direto à Justiça e solicito as medidas protetivas.
Tem a DEAM (Delegacia de Atendimento à Mulher), o canal de registro de ocorrência para responsabilização, que é uma forma de iniciar o processo. Funciona na Av. Amaral Peixoto sem número, no 3 andar.
Adriana Lins: Qualquer delegacia pode fazer esse registro. Depois, esse documento é encaminhado para a DEAM, onde será feito o acompanhamento. Se eu sofri, por exemplo, uma violência no Fonseca, e não tenho dinheiro de passagem ou não consigo me deslocar, posso entrar na delegacia de lá e fazer o registro de ocorrência. Se eu moro em São Gonçalo, também posso registrar em Niterói. Se eu faço o registro em Niterói de um crime que foi em São Gonçalo, o que vai acontecer é a demora. Esse inquérito vai ser remetido para a delegacia responsável por aquele território.
Eu sei que o tema é violência psicológica, mas gosto sempre de falar sobre violência sexual. Quando você sofre violência sexual, é importante a profilaxia. Você tem 72 horas para fazer essa profilaxia. Então, primeiro: eu posso querer ou não fazer o registro de ocorrência. Não sou obrigada. Mesmo eu querendo fazer, antes de ir à delegacia registrar, eu preciso ir a um serviço de saúde para fazer a profilaxia para doenças, ISTs e gravidez. Às vezes, a gente não sabe disso. Vai para casa ou vai primeiro para a delegacia. Depois vai para a Sala Lilás. Nisso, você perde tempo, e quanto menos tempo, menor a chance de eu me prevenir. Em Niterói, a gente tem esse atendimento em toda a rede de saúde, pelo menos o inicial, porque existe a profilaxia, que é aquela batelada de medicação, aquele coquetel, mas depois você faz um acompanhamento por seis meses. Esse desdobramento tem locais específicos. Um deles é o SOS Mulher, no Hospital Universitário Antônio Pedro, que faz o atendimento e a orientação.
Adriana Lins: Porque não deixa de ser um atravessamento de gênero dentro da cultura, da educação e da saúde. A gente tem que ter produção de todas as formas possíveis sobre essa questão para que possamos nos sentir seguras para falar sobre nossas dores. Ocupem esses espaços de fala. Acho que é isso o que falta. Se esse espaço está disponível, se é um lugar onde a gente pode falar, é ali que vou. Isso é importante, essa coisa de trazer para fora, porque a violência tem uma característica do privado, de estar fechado a quatro paredes, e é por isso que sofremos tantas violências.